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Fonte: Vermelho - São Paulo,SP,Brazil
Um contrato abusivo deve ser seguido ao pé da letra? Para o jornalista, deputado estadual pelo DEM-SP, ideólogo conservador e participante do fracassado Cansei!, João Mellão Neto, a resposta é positiva, como declara no artigo 'Uma questão de princípios', publicado em O Estado de S. Paulo (27 de março de 2009).
Nele, Mellão conta a áspera discussão que teve com sua filha a respeito do pagamento de bônus no valor de 165 milhões de dólares (hoje fala-se em 218 mihões...) aos executivos da AIG, que ela atacava e ele defendia, aceitando a palavra do presidente daquela falida ex-gigante mundial dos seguros de que eram previstos em contrato.
Mellão assegura com franqueza crua que 'o respeito aos contratos é um princípio sagrado do sistema. Os contratos devem ser cumpridos em qualquer circunstância'. Como o prepsidente Barak Obama não aceitou este dogma, sua atitude foi taxada pelo comentarista de 'demagógica e inconsequente' pois ele 'deveria defender a inviolabilidade dos contratos'.
O jornalista paulistano não deixa dúvida também sobre o significado da palavra sistema, empregada na defesa dos bônus de executivos cujo mérito foi empurrar o mundo para uma crise de dimensões gigantescas. Trata-se do capitalismo, que tem a 'confiança' entre seus 'fundamentos morais', fazendo com que o respeito aos contratos seja 'sagrado'.
Mellão busca bases longínquas para sua argumentação, e lembra a resposta que Sócrates teria dado aos amigos que lhe ofereciam a fuga para escapar à pena de morte. O filósofo teria perguntado: se os homens bons não obedecerem às leis más, por que os homens maus hão de obedecer às leis boas?
Para um conservador como Sócrates que, em outra ocasião, teria dito que cabe ao governante dar ordens, e aos governados obedecer (ver I. F. Stone, O julgamento de Sócrates, SP, Cia das Letras, 1999, p. 34), esta observação faz sentido: as leis, boas ou más, devem ser reverenciadas e obedecidas. Mas não mudadas.
Este é o problema central da argumentação do conservador contemporâneo, João Mellão Neto. Para ele, o contrato sobrevive às mudanças na sociedade e devem, religiosamente, serem obedecidos. Mas de que contrato se trata? Mellão não distingue entre os contratos entre indivíduos, entre indivíduos e empresas, e o chamado contrato social, que - de acordo com a doutrina burguesa que tem raízes no Renascimento, rege o convívio na sociedade. Além disso, sua visão enfaticamente jurídica das relações sociais não distingue a natureza do contratualismo e reduz tudo a um individualismo estrito, regulado por leis eternas.
Claro, há os contratos entre os indivíduos (como os acordo de compra e venda, ou um contrato de aluguel de um bem); e há os contratos de trabalho, entre os operários e seus patrões. Todos são regidos por leis, e mudam de acordo com elas: como as leis refletem a correlação de forças existente em conjunturas históricas específicas, o chamado 'contrato social' muda com elas. Quase sempre para o benefício coletivo, favorecendo o bem estar do povo e dos trabalhadores.
Muitas vezes, em sentido contrário. O golpe militar de 1º de abril de 1964 (que, amanhã, completa 45 anos) foi, nos termos do comentarista conservador, uma clara quebra de contrato. João Goulart fora eleito vice-presidente de Jânio Quadros (Mellão, por sinal, começou na política na chamada Juventude Janista, depois da Anistia de 1979); quando Jânio renunciou, o contrato (o mais alto deles, a Constituição da República) estabelecia que o cargo deveria ser assumido pelo vice. Mas a resistência militar e conservadora foi intensa; Goulart, um progressista e democrata, assumiu e, depois de um mandato de dois anos e sete meses marcados pela pertinácia da resistência conservadora, acabou deposto por um golpe militar.
Nem na época, nem depois, houve protestos conservadores pela quebra de contrato... O golpe de Estado significou uma mudança na correlação de forças na sociedade, nitidamente desfavorável aos trabalhadores, aos democratas e aos lutadores pelo progresso social, e os contratualistas burgueses não perceberam a quebra de contrato ocorrida.
Hoje, o clamor social exige um novo contrato. Recusa o contrato de respeito aos juros extorsivos, às privatizações perdulárias e destrutivas, aos direitos exclusivos de um pequeno clube de indivíduos privilegiados. Exige um novo pacto que tenha, em seu centro, os trabalhadores e os empresários que tiram seu lucro da produção e não da especulação alimentada pelos juros altos e das tramóias financeiras.
Nos EUA, este clamor se manifesta no repúdio à premiação escandalosa de autores de maracutaias gigantescas que estão na base da crise atual. É certo que os mecanismos da crise são inerentes ao sistema capitalista e suas mazelas - mas eles foram potencializados pela busca gananciosa daqueles lucros baseados na fraude e, depois, na premiação dos fraudadores.
O clamor social e a luta dos povos mudam os contratos. O apego à frieza de sua letra é o argumento daqueles que, privilegiados em uma situação histórica particular, agarram-se à expressão jurídica desta mesma ordem, recusando-se a aceitar que, mudando a sociedade, mudam-se os contratos.
Foi assim na campanha abolicionista das décadas de 1870 e 1880, quando o argumento conservador mais forte contra a libertação dos escravos foi a defesa dogmática da propriedade privada (que, no caso, eram seres humanas cuja escravização a sociedade rejeitava) e dos direitos dos proprietários. Isto é, era a defesa teimosa dos contratos. Defesa que disfarça o imobilismo social daqueles que querem que tudo continue como está para que seus privilégios de classe continuem inalterados.
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